Poucos sabem, mas no Brasil também existiu os caçadores de recompensa. Indivíduos sem muito amor próprio que ganhavam a vida caçando criminosos.
Um destes despreocupados aventureiros era conhecido pelo nome de José Jesus. Ninguém sabe se era seu nome real. Uns o chamavam de J.J., outros de Jesus, e seus inimigos o chamavam de Satanás. Mas não era por ser caçador que ele ficou conhecido, e sim por sua estranha história.
José perseguia bandidos pelas vastas terras de onde hoje é conhecido pelo estado de Mato Grosso até o Amazonas. Era o ano de 1890 de nosso senhor, e antes disto J.J. era caçador de escravos. Não sabia fazer outra coisa. Era um caçador, bruto, ignorante e despreocupado.
Carregava uma espingarda do exército brasileiro, aquele de carregamento rudimentar por vareta de madeira, e um revólver Remington modelo inglês de 1875, não que ele soubesse disto. Um facão e uma adaga completavam seu repertório.
Pensava ele que não chegaria à velhice, pois nesta profissão ninguém se aposenta. É mais do que óbvio que alguém viria encomendar sua alma. Pois tal ofício era similar aos próprios bandidos que ele caçava agora.
Mas um dia, ele encontrou algo que mudaria sua vida para sempre. Ele estava perseguindo um bandido pela densa mata quando avistou uma luz intensa, tal como o sol. Descia ao campo naquela noite escura e sem luar. José se aproximou com cautela, mas logo foi recebido por seres estranhos e hostis. Eles eram altos e estranhamente belos, de pele muito branca, e de imensos e negros olhos. Suas intenções eram claramente malignas.
José percebeu que, quando um deles ergueu sua mão em sua direção, ela se abriu em oito tentáculos, e mesmo estando a mais de quatro metros de distância da criatura, J.J. sentiu sua vida lhe abandonar, como se seu sangue fosse sugado. Sua pele ficou vermelha, e sangue começou a sair pelos olhos e nariz.
Sem saber o que fazer, J.J. tentou correr, mas os seres o pegaram e o levaram para dentro da luz.
Lá, ele descobriu um outro mundo, tal como uma casa de metal polido. Era uma espécie de sala para investigar seres (por dentro). Ali havia toda sorte de animais, pedaços dentro de jarros de vidro de muitas cores. Cabeça de javali de um lado, um braço, provavelmente de um índio, do outro. Logo José percebeu que aquela coisa viajava por aí, talvez vinda do inferno, para caçar, e José havia sido escolhido como mais um troféu.
Logo José desmaiou. Acordando pouco tempo depois numa espécie de maca de metal prateado.
Estava só, num local circular, de paredes claras, da mesma cor da maca.
Sua primeira reação foi colocar a mão em sua arma, ainda estava ali, e a faca também.
J.J. não ia desistir, não sem lutar. Ele não teve muito tempo de pensar. A porta se abriu e uma daquelas estranhas entidades entrou.
- Inferno! - disse em voz nervosa, e apressadamente sacou da arma.
A criatura ergueu a mão vagarosamente, fazendo um barulho medonho que lembrava vidro quebrado, com sua boca serrada por mil dentes pontiagudos.
Era um som desagradável, metálico, que beirava à insanidade.
José disparou.
No mesmo instante, a criatura, que recebera o golpe de pólvora, começou a encolher e enegrecer. E, igualmente, as paredes começaram a escurecer. J.J. correu, saltando por sobre a criatura porta afora, e logo se viu numa espécie de prato transparente. Como se o chão fosse de vidro, podia ver as copas das árvores alguns metros abaixo dele.
Tentando achar uma porta por onde escapar, e ao mesmo tempo pensando como sair daquela insanidade, pois estava voando.
- Só podia ser demônios! - sussurrava consigo mesmo.
E então, à sua frente, por outra porta lateral, uma segunda criatura apareceu. José começou a gritar:
- Desça! Desça ou eu atiro! - apontando desesperadamente a arma para a criatura e para baixo.
A criatura seguiu com total passividade. Apontando para baixo, logo pareceu entender seu desespero, e a nave começou a descer vagarosamente.
Ao tocar o chão, o solo da nave se desfez em líquido e depois em névoa. E, ao subir novamente, J.J. ficou de pé no meio do sertão.
Mas a ameaça ainda não havia terminado. J.J. observou que havia outras estrelas, tão brilhantes quanto aquela, e percebeu que aquelas criaturas não iriam embora.
Os estranhos estavam enviando mais daquelas pequenas estrelas para a Terra, e ele sabia que precisava impedir aquela loucura.
Correu para uma grande fazenda na região, bem no local onde deveria encontrar o bandido, motivo de sua peregrinação por aquelas bandas.
Ao chegar ofegante, pediu hospedagem e comida. Já não se preocupava com seu alvo.
Alguns trabalhadores da fazenda vieram ver o visitante noturno. Era muito curioso alguém viajando àquela hora. Naturalmente, coisa boa não era.
J.J. comia como um louco, tentando apagar a lembrança com comida e cachaça. Quando um dos trabalhadores perguntou:
- Homem, de onde o senhor vem? O que aconteceu? Cadê seu cavalo?
- Cavalo!? Eu nem lembro se eu tinha um.
- O que aconteceu?
- Não sei explicar. - retrucou J.J.
- Eu conheço o senhor! - disse uma voz rouca mais distante na mesa. Era um velho de barba branca, fumando o cachimbo.
- O senhor é Jesus, o caçador de recompensas.
Todos se afastaram para prestar mais atenção.
- E veio buscar quem!? - um caolho questionou do outro lado da mesa.
- Ninguém. Não estou caçando ninguém... na verdade... estou sendo caçado.
E continuou a comer.
- Como assim homem!? Está trazendo sua confusão para cá!?
- Manuel, pegue as armas. - disse a cozinheira a seu marido, que prontamente caminhou para dentro.
- Quem está vindo? O que você fez?
- Não admitimos confusão aqui, estranho! Vá embora!
A confusão já estava feita. J.J. bateu a caneca de ferro com força sobre a mesa para ter a atenção de todos.
- Eu não fiz nada de errado, e não são pessoas que estão vindo.
- E que diabos está vindo!?
- Isso mesmo! - disse Jesus, pegando a garrafa de cachaça.
- O que senhor!?
- São demônios! Eles atalharam meu caminho, mas eu atirei em um deles. O desgraçado fez um barulho infernal, mas não acho que morreu. Eles vão voltar. Estão espalhados pelo mato, como estrelas errantes, caçando.
- Ave Maria! O senhor está brincando!
- Não está não, senhora. Eu vi essas estrelas mais cedo, eu falei que me davam medo. - disse um garoto mais novo, de aproximadamente 16 anos, com os olhos arregalados. O jovem Bernardo estava ali, assustado, escutando tudo.
- Um dia... tem poucos dias... - continuou o jovem rapaz. - Eu vi uma criatura que parecia gente, saindo do rio. Pensei que até era uma sereia. A pele era branca como cera de vela, estava nua, mas não tinha corpo que nem o nosso. Parecia mulher, mas não tinha as coisas de mulher, nem seios.
- Acho isso uma grande bobagem! Só estão querendo assustar as pessoas. - disse Zacarias, o caolho. Agora mais calmo, José o reconhecera: era seu alvo. Mas já havia perdido o interesse na empreitada.
- Exatamente! - concordou José, voltando-se para o jovem.
- O que vamos fazer? - perguntou a senhora, visivelmente assustada.
- Se eles vierem, nós vamos lutar. - disse o velho com seu cachimbo.
- O senhor não conseguiria, papai. - respondeu a dona.
- Se engana, minha filha. Não é a primeira vez que eles vêm aqui. Você nem era nascida. Faz exatos cinquenta anos que as portas do inferno se abriram aqui por estas bandas.
Todos ficaram atentos e ansiosos pelo relato do senhor de barba branca. Ele bateu seu cachimbo na coluna de madeira do alpendre, deixando cair suas cinzas.
- O povo indígena que habitava aqui contava histórias sobre essas criaturas. Eles vêm e levam tudo: ouro, plantas, animais e pessoas. Os índios deixavam, porque quando tentaram lutar... a coisa ficou feita.
- Os brancos não são o problema. Eles não são de lutar muito. O problema são os vermelhos. Como cães do inferno... cabeça de lobo, pernas de aranhas.
Uma pausa longa e dramática demais se fez presente. O velho continuou, enquanto arrumava seu fumo no cachimbo.
- O senhor disse que deu um tiro em um deles?
- Sim, senhor! – respondeu José Jesus.
- Ele não morreu. – considerou o velho. - Eles não morrem. Uma vez, um trabalhador daqui, o velho Adão, arrancou a cabeça de um com uma foice... O desgraçado catou a própria cabeça e levou embora...
- E agora que ele te viu, ele vai querer vosmecê. Se não vierem hoje, virão amanhã. – ascendeu seu cachimbo com uma binga.
- Ele tem que ir embora! – gritou um medroso ao fundo.
- Não adianta, o rastro dele já está aqui, o cheiro dele já está aqui. Eles virão. – concluiu o velho.
- O que eles querem, velho? Vingança pelo tiro? – questionou J.J.
- Vingança!? – Riu o velho. – Não escutou o que eu disse? Eles não morrem. Eles não se importam, são apenas curiosos demais. Agora querem saber como você os atingiu. Querem te testar, querem te abrir e virar do avesso. Igual fizeram com o pobre Ricardo. Ele disse que foi levado uma vez, fizeram horrores com ele, até o abandonaram num deserto. Depois trouxeram ele de volta. E um tempo depois ele se matou, com medo de ser levado novamente. Mas ele foi o único que voltou. Éramos quinze homens, cinco foram levados.
José coçou a barba nervosamente, pensando no que fazer. Foi quando o jovem Bernardo disse algo que causou um frio na espinha de todos.
- Eu vi uma estrela. – Disse o jovem, olhando para o céu noturno salpicado de estrelas.
- Não diga bobagens, Bernardo. – Disse a Dona, nervosamente.
- Não! Olha... – O jovem apontou o dedo para uma distante e lenta estrela cadente.
- É só uma estrela cadente. – Concluiu a mulher, mas, tão logo disse estas palavras, a estrela parou e começou uma descida vertical, passando por entre a mata densa e desaparecendo.
- Peguem suas armas. – Disse o velho. Mas não havia muitas armas.
A luz do lampião não ajudava muito, mas todos viram um enorme vulto branco se aproximar. Então se ouviu o riso inocente de uma criança.
- Tem criança em casa? – Perguntou José.
- Não senhor. – Respondeu a Dona.
- Deve ser coisa da minha cabeça. – Concluiu J.J.
- Da cabeça de todos nós. – Disse o velho. – Essas coisas entram em nossas cabeças. São demônios!
E a voz disse: - Vamos brincar... brinque comigo... – e continuou sorrindo.
- Mas é a voz da Mariazinha! – Disse Zacarias num susto.
J.J. não se conteve e sacou da espingarda, mirando na cabeça da criatura que sorria com mil dentes. O estrondo foi alto, a pólvora negra parecia ter mais do que o necessário, tamanha a fumaça. O que se seguiu foi um grunhido como o de um porco sendo esfaqueado, junto com um barulho agonizante de metal sendo raspado – provavelmente os dentes da criatura.
- Quem é Mariazinha? – Questionou J.J.
- Como!? – Perguntou Zacarias.
- A voz... você disse agora há pouco.
- Ah, sim... – Zacarias coçou a barba, buscando as palavras. – Mundo estranho este nosso.
- O senhor sabe mais do que está dizendo, não é mesmo?
- Bom. Na verdade, não sei muito. Mas já enfrentei isso antes. – Ajeitou o chapéu e continuou: – Mariazinha era uma garotinha, de família rica, morava no Rio de Janeiro. A família me contratou para pegar algum maluco que vivia perturbando eles. Era uma confusão só: invadia a antiga senzala, derrubava coisas, assustava até os cães.
- E era uma dessas coisas? – Questionou Bernardo.
- Não, era um maluco mesmo. Eu o peguei. Mas então descobri que tinha uma coisa na cabeça dele, uma espécie de mosca... acredite se quiser, do tamanho de minha mão.
- Hoje, eu acredito. – Respondeu J.J.
- Então, prendemos ele. Eu arranquei o bicho, que... foi nojento. Sangue para todo lado. Então ele caiu no chão, se tremendo todo, e morreu. Na noite seguinte, uma coisa dessas apareceu. Mas outra coisa também apareceu. Era um homem negro, parecia normal, seus olhos eram dourados, e ele matou a criatura com uma arma estranha. Mas, em seguida, morreu pelos ferimentos na luta que teve. Eu fiquei com a arma e rastreei essas criaturas até aqui. Todos morreram, e eu sou o único suspeito.
- Foi assim que o senhor perdeu o olho? – Questionou Bernardo.
- Não, isso foi antes, bem antes.
- E a arma, onde está? – J.J. se prontificou bastante interessado.
Zacarias sacou uma coisa muito peculiar, parecia um revólver misturado com um lampião, havia uma garrafa com líquido vermelho dentro, e bem pouco.
- O que é esse líquido? Parece sangue. – disse J.J.
- Não sei. Só sei que temos pouca munição... – Antes de poder finalizar suas palavras, ouviu um estampido ensurdecedor. Era o velho que havia disparado contra outra criatura.
Desta vez se fez um rosnar similar aos cães. A criatura cambaleou, mas não recuou como a outra. Esta era de pele avermelhada, a cabeça lembrava um pouco um cão, sem pelo, e se erguia em outras ágeis pernas finas que davam a impressão de ter mais de dois metros de altura.
- Mãe de Deus! – Disse Bernardo.
A criatura avançou, e outra já se via ao fundo, e logo mais uma apareceu.
- Para dentro todos! – Disse a dona da fazenda, enquanto seu marido também disparava contra a criatura que titubeava, sangrava um sangue roseado, mas não caía.
- Tente sua arma! – Bradou J.J. para Zacarias. Que consentiu e disparou. E o que saiu foi um raio vermelho em direção à criatura. Mas nada aconteceu.
- Ora! É um brinquedo? Está com defeito?
- Não sei. – Mais tiros, uns carregavam, outros disparavam. – José também disparava com seu revólver até que uma das criaturas caiu, aparentemente morta. Mas não era o suficiente, elas eram ágeis e muito resistentes, e ainda restavam três.
Enquanto corriam para dentro da casa, para se trancar, o velho tropeçou, caindo no chão, e logo uma daquelas aranhas caninas o alcançou.
- Papai! Não! – Gritou a dona, sendo puxada para dentro pelo marido.
A criatura apunhalou o velho com uma de suas patas, se apoiando em seu ombro esquerdo. E uma das criaturas brancas como cera de vela apareceu ao lado, sorrindo.
- Você! – o velho parecia ter lhe reconhecido. Pois a criatura tinha o pescoço enegrecido e costurado. Era o antigo, o mesmo, de cinquenta anos atrás, cuja cabeça havia sido decepada pelo velho Adão.
Logo a criatura abriu seus tentáculos para sugar o sangue do velho, quando José o atingiu novamente, e o marido da dona atingiu a besta aracnídea, que num reflexo lançou o velho para bem longe.
Saltando para cima da casa. Tentando desesperadamente entrar na pequena cabana. Tiros para o alto, e Bernardo foi sugado para fora da cabana repentinamente.
- O que foi isso!? Bernardo. – Cadê ele!?
Do lado de fora, duas criaturas aguardavam, juntamente com Bernardo, visivelmente inconsciente. Era a mesma criatura de antes, com a marca negra no pescoço, e uma segunda, bastante similar, mas com uma mancha negra no meio do corpo.
- Talvez... – disse Zacarias – Talvez essa arma só funcione nos brancos. Toma. – Entregando a arma para J.J. – Depois que perdi o olho fiquei muito ruim de tiro a curta distância.
José caminhou até próximo de cinco metros em direção às criaturas. Que começaram a falar com voz de criança novamente: - Brinca comigo.
- É tudo uma brincadeira para vocês? Não se importam com as vidas das pessoas?
- Brinca comigo – foi a resposta, seguida de um sorriso infantil que penetrava a mente de todos.
- Morra desgraçado! – Sacando da arma e disparando contra uma das criaturas. Que recebeu o golpe e continuou a sorrir por um tempo. E logo entrou em ebulição, tremendo como se estivesse se asfixiando. Novamente aquele som perturbador, e metálico deu lugar a bolhas e um afogamento. A outra olhava tudo com curiosidade. Mas temeu quando seu companheiro caiu no chão e começou a derreter. Libertando Bernardo do transe.
As duas aranhas, ao ver um dos mestres virar sopa, se encolheram e começaram a se afastar. Igualmente o segundo estranho.
- Mas José tentou disparar novamente, sem efeito, a munição havia acabado, não havia mais líquido da arma. Mas havia o velho jeito da floresta. Socos e pauladas cobriram o mundo da criatura que se encolheu. Não parecia haver ossos naquele ser.
Logo tudo se acalmou. Ofegante, J.J. falou: - Ele não morrer. O que faremos?
- Vamos trancá-lo no porão. – Disse o marido, dono do local.
- Vai ficar com essa coisa aí no porão?
- Até ver o que podemos fazer. Não podemos deixar ir embora, ele vai voltar.
- Bernardo... me ajude a achar papai. – Ele vai ter um enterro digno. – Chorava a dona. No caminho, encontraram mais dois trabalhadores mortos.
Nos dias seguintes, eles tentaram de tudo. A criatura era fraca fisicamente, mas maleável e indestrutível. Espancaram, queimaram, cortaram em pedaços. Ela se recompunha, se costurava. E por muitos dias, sempre que alguém descia ao porão, se ouvia, no fundo da mente, uma voz de criança a chamar: - Brinca comigo.